Ela é a mesma que outra que não ela.
Só nós — ó tempo, ó alma, ó vida, ó morte! —
Mortalmente compramos
Ter mai vida que a vida.
Acima da verdade estão os deuses.
A nossa ciência é uma falhada cópia
Da certeza com que eles
Sabem que há o Universo.
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Tudo é tudo, e mais alto estão os deuses,
Não pertence à ciência conhecê-los,
Mas adorar devemos
Seus vultos como às flores,
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Porque visíveis à nossa alta vista,
São tão reais como reais as flores
E no seu calmo Olimpo
São outra Natureza.
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A flor que és, não a que dás, eu quero.
Porque me negas o que te não peço.
Tempo há para negares
Depois de teres dado.
Flor, sê-me flor! Se te colher avaro
A mão da infausta esfinge, tu perere
Sombra errarás absurda,
Buscando o que não deste.
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Aguardo, equânime, o que não conheço —
Meu futuro e o de tudo.
No fim tudo será silêncio, salvo
Onde o mar banhar nada.
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Aqui, dizeis, na cova a que me abeiro,
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Não 'stá quem eu amei. Olhar nem riso
Se escondem nesta leira.
Ah, mas olhos e boca aqui se escondem!
Mãos apertei, não alma, e aqui jazem.
Homem, um corpo choro!
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Aqui, Neera, longe
De homens e de cidades,
Por ninguém nos tolher
O passo, nem vedarem
A nossa vista as casas,
Podemos crer-nos livres.
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Bem sei, é flava, que inda
Nos tolhe a vida o corpo,
E não temos a mão
Onde temos a alma;
Bem sei que mesmo aqui
Se nos gasta esta carne
Que os deuses concederam
Ao estado antes de Averno.
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Mas aqui não nos prendem
Mais coisas do que a vida,
Mãos alheias não tomam
Do nosso braço, ou passos
Humanos se atravessam
Pelo nosso caminho.
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Não nos sentimos presos
Senão com pensarmos nisso,
Por isso não pensemos
E deixemo-nos crer
Na inteira liberdade
Que é a ilusão que agora
Nos torna iguais dos deuses.
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Aqui, neste misérrimo desterro
Onde nem desterrado estou, habito,
Fiel, sem que queira, àquele antigo erro
Pelo qual sou proscrito.
O erro de querer ser igual a alguém
Feliz em suma — quanto a sorte deu
A cada coração o único bem
De ele poder ser seu.
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Ao longe os montes têm neve ao sol,
Mas é suave já o frio calmo
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Que alisa e agudece
Os dardos do sol alto.
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Hoje, Neera, não nos escondamos,
Nada nos falta, porque nada somos.
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Não esperamos nada
E ternos frio ao sol.
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Mas tal como é, gozemos o momento,
Solenes na alegria levemente,
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Aos deuses peço só que me concedam
O nada lhes pedir. A dita é um jugo
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Porque é um certo estado.
Não quieto nem inquieto meu ser calmo
Quero erguer alto acima de onde os homens
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Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.
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Passamos e agitamo-nos debalde.
Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.
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Anjos ou deuses, sempre nós tivemos,
A visão perturbada de que acima
De nos e compelindo-nos
Agem outras presenças.
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Como acima dos gados que há nos campos
O nosso esforço, que eles não compreendem,
Os coage e obriga
E eles não nos percebem,
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A palidez do dia é levemente dourada.
O sol de inverno faz luzir como orvalho as curvas
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Dos troncos de ramos Secos.
O frio leve treme.
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Desterrado da pátria antiqüíssima da minha
Crença, consolado só por pensar nos deuses,
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Aqueço-me trêmulo
A outro sol do que este.
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O sol que havia sobre o Parténon e a Acrópole
O que alumiava os passos lentos e graves
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De Aristóteles falando.
Mas Epicuro melhor
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Me fala, com a sua cariciosa voz terrestre
Tendo para os deuses uma atitude também de deus,
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Sereno e vendo a vida
À distância a que está.
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Atrás não torna, nem, como Orfeu, volve
Sua face, Saturno.
Sua severa fronte reconhece
Só o lugar do futuro.
Não temos mais decerto que o instante
Em que o pensamos certo.
Não o pensemos, pois, mas o façamos
Certo sem pensamento.
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A nada imploram tuas mãos já coisas,
Nem convencem teus lábios já parados,
No abafo subterrâneo
Da úmida imposta terra.
Só talvez o sorriso com que amavas
Te embalsama remota, e nas memórias
Te ergue qual eras, hoje
Cortiço apodrecido.
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E o nome inútil que teu corpo morto
Usou, vivo, na terra, como uma alma,
Não lembra. A ode grava,
Anônimo, um sorriso.
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As Rosas amo dos jardins de Adônis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.
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Azuis os montes que estão longe param.
De eles a mim o vário campo ao vento, à brisa,
Ou verde ou amarelo ou variegado,
Ondula incertamente.
Débil como uma haste de papoila
Me suporta o momento. Nada quero.
Que pesa o escrúpulo do pensamento
Na balança da vida?
Como os campos, e vário, e como eles,
Exterior a mim, me entrego, filho
Ignorado do Caos e da Noite
Às férias em que existo.
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Bocas roxas de vinho,
Testas brancas sob rosas,
Nus, brancos antebraços
Deixados sobre a mesa;
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Tal seja, Lídia, o quadro
Em que fiquemos, mudos,
Eternamente inscritos
Na consciência dos deuses.
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Antes isto que a vida
Como os homens a vivem
Cheia da negra poeira
Que erguem das estradas.
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Só os deuses socorrem
Com seu exemplo aqueles
Que nada mais pretendem
Que ir no rio das coisas.
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Breve o dia, breve o ano, breve tudo.
Não tarda nada sermos.
Isto, pensado, me de a mente absorve
Todos mais pensamentos.
O mesmo breve ser da mágoa pesa-me,
Que, inda que mágoa, é vida.
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Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no inverno os arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.
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À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.
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À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo,
|
E casuais, interrompidas, sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do Sol) —
|
Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem
|
Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.
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E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade,
Como quem compõe roupas
O outrora compúnhamos
|
Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
E há só noite lá fora.
|
Cada dia sem gozo não foi teu
|
Cada dia sem gozo não foi teu
Foi só durares nele. Quanto vivas
Sem que o gozes, não vives.
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Não pesa que amas, bebas ou sorrias:
Basta o reflexo do sol ido na água
De um charco, se te é grato.
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Feliz o a quem, por ter em coisas mínimas
Seu prazer posto, nenhum dia nega
A natural ventura!
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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.
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Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.
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Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.
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Como se cada beijo
Fora de despedida,
Minha Cloe, beijemo-nos, amando.
Talvez que já nos toque
No ombro a mão, que chama
À barca que não vem senão vazia;
E que no mesmo feixe
Ata o que mútuos fomos
E a alheia soma universal da vida.
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Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade,
|
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
|
Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
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Cuidas, ínvio, que cumpres, apertando
Teus infecundos, trabalhosos dias
Em feixes de hirta lenha,
Sem ilusão a vida.
A tua lenha é só peso que levas
Para onde não tens fogo que te aqueça,
Nem sofrem peso aos ombros
As sombras que seremos.
Para folgar não folgas; e, se leoas,
Antes legues o exemplo, que riquezas,
De como a vida basta
Curta, nem também dura.
Pouco usamos do pouco que mal temos.
A obra cansa, o ouro não é nosso.
De nós a mesma fama
Ri-se, que a não veremos
|
Quando, acabados pelas Parcas, formos,
Vultos solenes, de repente antigos,
E cada vez mais sombras,
Ao encontro fatal —
O barco escuro no soturno rio,
E os novos abraços da frieza stígia
E o regaço insaciável
Da pátria de Plutão.
|
Da lâmpada noturna
A chama estremece
E o quarto alto ondeia.
|
Os deuses concedem
Aos seus calmos crentes
Que nunca lhes trema
A chama da vida
Perturbando o aspecto
Do que está em roda,
Mas firme e esguiada
Como preciosa
E antiga pedra,
Guarde a sua calma
Beleza contínua.
|
Da nossa semelhança com os deuses
Por nosso bem tiremos
Julgarmo-nos deidades exiladas
E possuindo a Vida
Por uma autoridade primitiva
E coeva de Jove.
Altivamente donos de nós-mesmos,
Usemos a existência
Como a vila que os deuses nos concedem
Para, esquecer o estio.
|
Não de outra forma mais apoquentada
Nos vale o esforço usarmos
A existência indecisa e afluente
Fatal do rio escuro.
|
Como acima dos deuses o Destino
É calmo e inexorável,
Acima de nós-mesmos construamos
Um fado voluntário
Que quando nos oprima nós sejamos
Esse que nos oprime,
E quando entremos pela noite dentro
Por nosso pé entremos.
|
De Apolo o carro rodou pra fora
Da vista. A poeira que levantara
Ficou enchendo de leve névoa
|
A flauta calma de Pã, descendo
Seu tom agudo no ar pausado,
Deu mais tristezas ao moribundo
|
Cálida e loura, núbil e triste,
Tu, mondadeira dos prados quentes,
Ficas ouvindo, com os teus passos
|
A flauta antiga do deus durando
Com o ar que cresce pra vento leve,
E sei que pensas na deusa clara
|
E que vão ondas lá muito adentro
Do que o teu seio sente cansado
Enquanto a flauta sorrindo chora
|
De novo traz as aparentes novas
Flores o verão novo, e novamente
Verdesce a cor antiga
Das folhas redivivas.
Não mais, não mais dele o infecundo abismo,
Que mudo sorve o que mal somos, torna
À clara luz superna
A presença vivida.
Não mais; e a prole a que, pensando, dera
A vida da razão, em vão o chama,
Que as nove chaves fecham,
Da Estige irreversível.
|
O que foi como um deus entre os que cantam,
O que do Olimpo as vozes, que chamavam,
'Scutando ouviu, e, ouvindo,
Entendeu, hoje é nada.
Tecei embora as, que teceis, Grinaldas.
Quem coroais, não coroando a ele?
Votivas as deponde,
Fúnebres sem ter culto.
Fique, porém, livre da leiva e do Orco,
A fama; e tu, que Ulisses erigira,
Tu, em teus sete montes,
Orgulha-te materna,
Igual, desde ele às sete que contendem
Cidades por Homero, ou alcaica Lesbos,
Ou heptápila Tebas
Ogígia mãe de Píndaro.
|
Deixemos, Lídia, a ciência que não põe
Mais flores do que Flora pelos campos,
|
Nem dá de Apolo ao carro
Outro curso que Apolo.
|
Contemplação estéril e longínqua
Das coisas próximas, deixemos que ela
|
Olhe até não ver nada
Com seus cansados olhos.
|
Vê como Ceres é a mesma sempre
E como os louros campos intumesce
|
Dos agrados de Pã.
Vê como com seu jeito sempre antigo
Aprendido no orige azul dos deuses,
|
As ninfas não sossegam
Na sua dança eterna.
|
E como as heniadríades constantes
Murmuram pelos rumos das florestas
|
E atrasam o deus Pã.
Na atenção à sua flauta.
|
Não de outro modo mais divino ou menos
Deve aprazer-nos conduzir a vida,
|
Quer sob o ouro de Apolo
Ou a prata de Diana.
|
Quer troe Júpiter nos céus toldados.
Quer apedreje com as suas ondas
|
Netuno as planas praias
E os erguidos rochedos.
|
Do mesmo modo a vida é sempre a mesma.
Nós não vemos as Parcas acabarem-nos.
|
Por isso as esqueçamos
Como se não houvessem.
|
Colhendo flores ou ouvindo as fontes
A vida passa como se temêssemos.
|
Não nos vale pensarmos
No futuro sabido
|
Que aos nossos olhos tirará Apolo
E nos porá longe de Ceres e onde
|
Nenhum Pã cace à flauta
Nenhuma branca ninfa.
|
Só as horas serenas reservando
Por nossas, companheiros na malícia
|
De ir imitando os deuses
Até sentir-lhe a calma.
|
Venha depois com as suas cãs caídas
A velhice, que os deuses concederam
Que esta hora por ser sua
Não sofra de Saturno
Mas seja o templo onde sejamos deuses
Inda que apenas, Lídia, pra nós próprios
Nem precisam de crentes
Os que de si o foram.
|
Dia após dia a mesma vida é a mesma.
O que decorre, Lídia,
No que nós somos como em que não somos
Igualmente decorre.
Colhido, o fruto deperece; e cai
Nunca sendo colhido.
Igual é o fado, quer o procuremos,
Quer o 'speremos. Sorte
Hoje, Destino sempre, e nesta ou nessa
Forma alheio e invencível.
|
Do que quero renego, se o querê-lo
Me pesa na vontade. Nada que haja
|
Vale que lhe concedamos
Uma atenção que doa.
|
Meu balde exponho à chuva, por ter água.
Minha vontade, assim, ao mundo exponho,
|
Recebo o que me é dado,
E o que falta não quero.
|
O que me é dado quero
Depois de dado, grato.
|
Nem quero mais que o dado
Ou que o tido desejo.
|
Domina ou cala. Não te percas, dando
Aquilo que não tens.
Que vale o César que serias? Goza
Bastar-te o pouco que és.
Melhor te acolhe a vil choupana dada
Que o palácio devido.
|
Estás só. Ninguém o sabe.
|
Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada 'speres que em ti já não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada.
|
Este, seu ‘scasso campo ora lavrando,
Ora solene, olhando-o com a vista
De quem a um filho olha, goza incerto
A não-pensada vida.
Das fingidas fronteiras a mudança
O arado lhe não tolhe, nem o empece
Per que concílios se o destino rege
Dos povos pacientes.
Pouco mais no presente do futuro
Que as ervas que arrancou, seguro vive
A antiga vida que não torna, e fica,
Filhos, diversa e sua.
|
É tão suave a fuga deste dia,
Lídia, que não parece, que vivemos.
|
Sem dúvida que os deuses
Nos são gratos esta hora,
|
Em paga nobre desta fé que temos
Na exilada verdade dos seus corpos
|
Convivas lúcidos da sua calma,
Herdeiros um momento do seu jeito
|
De viver toda a vida
Dentro dum só momento,
|
Dum só momento, Lídia, em que afastados
Das terrenas angústias recebemos
|
E um só momento nos sentimos deuses
Imortais pela calma que vestimos
|
E a altiva indiferença
Às coisas passageiras
|
Como quem guarda a c'roa da vitória
Estes fanados louros de um só dia
|
Guardemos para termos,
No futuro enrugado,
|
Perene à nossa vista a certa prova
De que um momento os deuses nos amaram
|
E nos deram uma hora
Não nossa, mas do Olimpo.
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Feliz aquele a quem a vida grata
Concedeu que dos deuses se lembrasse
|
Estas terrenas coisas onde mora
Um reflexo mortal da imortal vida.
Feliz, que quando a hora tributária
Transpor seu átrio por que a Parca corte
|
O fio fiado até ao fim,
Gozar poderá o alto prêmio
De errar no Averno grato abrigo
Da convivência.
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Mas aquele que quer Cristo antepor
Aos mais antigos Deuses que no Olimpo
|
O seu blasfemo ser abandonado
Na fria expiação — até que os Deuses
De quem se esqueceu deles se recordem —
Erra, sombra inquieta, incertamente,
|
Nem a viúva lhe põe na boca
O óbolo a Caronte grato,
E sobre o seu corpo insepulto
Não deita terra o viandante.
|
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