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JOGOS

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GIL VICENTE- AUTO DA BARCA DO INFERNO
GIL VICENTE- AUTO DA BARCA DO INFERNO

Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente

 

Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplação da sereníssima e muito católica rainha Lianor, nossa senhora, e representado por seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei Manuel, primeiro de Portugal deste nome.

 

Começa a declaração e argumento da obra. Primeiramente, no presente auto, se figura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos subitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estão,  scilicet, um deles passa para o paraíso e o outro para o inferno: os quais batéis tem cada um seu arrais na proa: o do paraíso um anjo, e o do inferno um arrais infernal e um companheiro.

 

O primeiro interlocutor é um Fidalgo que chega com um Paje, que lhe leva um rabo mui comprido e uma cadeira de espaldas. E começa o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha.
DIABO    —  À barca, à barca, houlá! que temos gentil maré!  — Ora venha o carro a ré!
Companheiro —  Feito, feito!Bem está!

Vai tu muitieramá,

e atesa aquele palanco

e despeja aquele banco,

para a gente que virá.

À barca, à barca, hu-u!

Asinha, que se quer ir!

Oh, que tempo de partir,

louvores a Belzebu!

 — Ora, sus! que fazes tu?
Despeja todo esse leito!

Companheiro —  Em boa hora! Feito, feito!
DIABO     — Abaixa aramá esse cu! Faze aquela poja lesta  e alija aquela driça.

Companheiro  — Oh-oh, caça! Oh-oh, iça, iça!
DIABO    —  Oh, que caravela esta!

Põe bandeiras, que é festa.
Verga alta! Âncora a pique!
— Ó poderoso dom Anrique,  cá vindes vós?... Que cousa é esta?...Vem o

Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz:
Fildalgo —   Esta barca onde vai ora,  que assim está apercebida?
DIABO    — Vai para a ilha perdida,  e há-de partir logo ess'ora.
Fildalgo —  Para lá vai a senhora?
DIABO    —  Senhor, a vosso serviço.
Fildalgo —  Parece-me isso cortiço...
DIABO    —  Porque a vedes lá de fora.
Fildalgo —  Porém, a que terra passais?
DIABO    — Para o inferno, senhor.

Fildalgo  — Terra é bem sem-sabor.
DIABO    —  Quê?... E também cá zombais?
Fildalgo —   E passageiros achais  para tal habitação?
DIABO    — Vejo-vos eu em feição  para ir ao nosso cais...
Fildalgo —  Parece-te a ti assim!...
DIABO    —  Em que esperas ter guarida?
Fildalgo —  Que leixo na outra vida  quem reze sempre por mim.


DIABO    —  Quem reze sempre por ti?!..

Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!...

E tu viveste a teu prazer,

cuidando cá guarnecer

por que rezam lá por ti?!...

Embarca — ou embarcai...

que haveis de ir à derradeira!

Mandai meter a cadeira,

que assim passou vosso pai.

Fildalgo —  Quê? Quê? Quê? Assim lhe vai?!
DIABO    — Vai ou vem! Embarcai prestes!

Segundo lá escolhestes,  assim cá vos contentai.

Pois que já a morte passastes,  haveis de passar o rio.

Fildalgo —  Não há aqui outro navio?
DIABO     —  Não, senhor, que este fretastes,  e primeiro que expirastes me destes logo sinal.
Fildalgo —  Que sinal foi esse tal?
DIABO    —  Do que vós vos contentastes.
Fildalgo —  A estoutra barca me vou.

Hou da barca! Para onde is?

Ah, barqueiros! Não me ouvis?

Respondei-me! Houlá! Hou!...

(Pardeus, aviado estou!

Cant'a isto é já pior...)

Oue jericocins, salvador!

Cuidam cá que são eu grou?

Anjo —  Que quereis?
Fildalgo —  Que me digais,  pois parti tão sem aviso,  se a barca do Paraíso é esta em que navegais.
Anjo — Esta é; que demandais?
Fildalgo —  Que me leixeis embarcar. Sou fidalgo de solar,  é bem que me recolhais.

Anjo —  Não se embarca tirania  neste batel divinal.
Fildalgo —  Não sei porque haveis por mal  que entre a minha senhoria...
Anjo —  Para vossa fantasia  mui estreita é esta barca.
Fildalgo —  Para senhor de tal marca  nom há aqui mais cortesia? Venha a prancha e atavio!
Levai-me desta ribeira!

Anjo — Não vindes vós de maneira  para entrar neste navio. Essoutro vai mais vazio: a cadeira entrará  e o rabo caberá e todo vosso senhor Ireis lá mais espaçoso, vós e vossa senhoria,  cuidando na tirania do pobre povo queixoso.

E porque, de generoso, desprezastes os pequenos,  achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso.
DIABO    — À barca, à barca, senhores!

Oh! que maré tão de prata!
Um ventozinho que mata e valentes remadores!
Diz, cantando:

Vós me veniredes a la mano,

a la mano me veniredes.

Fildalgo —  Ao Inferno, todavia!  Inferno há i para mi?  Oh triste! Enquanto vivi não cuidei que o i havia: Tive que era fantasia!
 Folgava ser adorado, confiei em meu estado e não vi que me perdia.
 Venha essa prancha! Veremos esta barca de tristura.

DIABO    — Embarque vossa doçura, que cá nos entenderemos... Tomarês um par de remos, veremos como remais, e, chegando ao nosso cais,  todos bem vos serviremos.

Fildalgo —  Esperar-me-ês vós aqui, tornarei à outra vida  ver minha dama querida que se quer matar por mi. Dia,   Que se quer matar por ti?!...

Fildalgo — Isto bem certo o sei eu.
DIABO    — Ó namorado sandeu, o maior que nunca vi!...
Fildalgo —  Como pod'rá isso ser,  que m'escrevia mil dias?
DIABO    —  Quantas mentiras que lias,  e tu... morto de prazer!...
Fildalgo —  Para que é escarnecer, quem nom havia mais no bem?
DIABO    —  Assim vivas tu, amém, como te tinha querer!
Fildalgo — Isto quanto ao que eu conheço...
DIABO    — Pois estando tu expirando, se estava ela requebrando com outro de menos preço.
Fildalgo — Dá-me licença, te peço, que vá ver minha mulher.
DIABO    — E ela, por não te ver, despenhar-se-á dum cabeço! Quanto ela hoje rezou, entre seus gritos e gritas,  foi dar graças infinitas quem a desassombrou.
Fildalgo —  Cant'a ela, bem chorou!
DIABO    —  Nom há i choro de alegria?..
Fildalgo —  E as lástimas que dizia?
DIABO    — Sua mãe lhas ensinou... Entrai, meu senhor, entrai: Ei la prancha! Ponde o pé...

Fildalgo —  Entremos, pois que assim é.
DIABO    — Ora, senhor, descansai,  passeai e suspirai. Em tanto virá mais gente.

Fildalgo — Ó barca, como és ardente!

Maldito quem em ti vai!

Diz o DIABO    ao Moço da cadeira:

DIABO    — Nom entras cá! Vai-te d'i!

A cadeira é cá sobeja; cousa que esteve na igreja nom se há-de embarcar aqui.

Cá lhe darão de marfim, marchetada de dolores, com tais modos de lavores, que estará fora de si...

À barca, à barca, boa gente,

que queremos dar à vela!

Chegar ela! Chegar ela!

Muitos e de boamente!

Oh! que barca tão valente!

Vem um Onzeneiro, e pergunta ao Arrais do Inferno, dizendo:

Onzeneiro — Para onde caminhais?
DIABO    — Oh! que má hora venhais,  onzeneiro, meu parente! Como tardastes vós tanto?

Onzeneiro —  Mais quisera eu lá tardar... Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto.

DIABO    — Ora mui muito m'espanto nom vos livrar o dinheiro!...
Onzeneiro — Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto...
DIABO    — Ora entrai, entrai aqui!
Onzeneiro — Não hei eu i d'embarcar!
DIABO    — Oh! que gentil recear,  e que cousas para mi!...
Onzeneiro — Ainda agora faleci, leixa-me buscar batel!
DIABO    — Pesar de Jam Pimentel! Porque não irás aqui?...

Onzeneiro — E para onde é a viagem?
DIABO    —  Para onde tu hás de ir.
Onzeneiro — Havemos logo de partir?
DIABO    — Não cures de mais linguagem.
Onzeneiro — Mas para onde é a passagem?
DIABO    — Para a infernal comarca.
Onzeneiro — Diz! Nom vou eu tal barca.

Estoutra tem avante
Vai-se à barca do Anjo, e diz:
Hou da barca! Houlá! Hou!
Haveis logo de partir?

Anjo — E onde queres tu ir?
Onzeneiro — Eu para o Paraíso vou.
Anjo —  Pois cant'eu mui fora estou de te levar para lá. Essoutra te levará; vai para quem te enganou!

Onzeneiro — Porquê?
Anjo — Porque esse bolsão tomará todo o navio.
Onzeneiro — Juro a Deus que vai vazio!
Anjo — Não já no teu coração.
Onzeneiro — Lá me fica, de rondão, minha fazenda e alhea.
Anjo — Ó onzena, como és feia  e filha de maldição!

Torna o Onzeneiro à barca do Inferno e diz:

Onzeneiro    Houlá! Hou! Demo barqueiro!

Sabês vós no que me fundo?

Quero lá tornar ao mundo

e trazer o meu dinheiro.

que aquele outro marinheiro,

porque me vê vir sem nada,

dá-me tanta borregada

como arrais lá do Barreiro.

DIABO    —  Entra, entra, e remarás!

Nom percamos mais maré!

Onzeneiro — Todavia...
DIABO    — Per força é! Que te pês, cá entrarás! Irás servir Satanás,  pois que sempre te ajudou.

Onzeneiro — Oh! Triste, quem me cegou?
DIABO    — Cal'te, que cá chorarás.

Entrando o Onzeneiro no batel, onde achou o Fidalgo embarcado, diz tirando o barrete:
Onzeneiro — Santa Joana de Valdês! Cá é vossa senhoria?

Fildalgo —  Dá ò demo a cortesia!
DIABO    — Ouvis? Falai vós cortês!

Vós, fidalgo, cuidareis

que estais na vossa pousada?

Dar-vos-ei tanta pancada

com um remo que renegueis!

Vem Joane, o PARVO, e diz ao Arrais do Inferno:

PARVO — Hou daquesta!
DIABO    — Quem é?
PARVO — Eu soo.

É esta a naviarra nossa?

DIABO    — De quem?
PARVO —  Dos tolos.
DIABO    — Vossa.

 Entra!

PARVO — De pulo ou de voo?

Hou! Pesar de meu avô!
Soma, vim adoecer e fui má hora morrer, e nela, para mi só.

DIABO    — De que morreste?
PARVO — De quê? Samicas de caganeira.

DIABO    —  De quê?
PARVO — De caga merdeira! Má rabugem que te dê!

DIABO    — Entra! Põe aqui o pé!
PARVO — Houlá! Nom tombe o zambuco!
DIABO    —  Entra, tolaço eunuco, que se nos vai a maré!
PARVO — Aguardai, aguardai, houlá! E onde havemos nós d'ir ter?

DIABO    —  Ao porto de Lucifer.
PARVO — Ha-á-a...
DIABO    — Ó Inferno! Entra cá!
PARVO — Ò Inferno?... Era má...

Hiu! Hiu! Barca do cornudo.

Pêro Vinagre, beiçudo,  rachador d'Alverca, huhá!

Sapateiro da Candosa!

Antrecosto de carrapato!

Hiu! Hiu! Caga no sapato, filho da grande aleivosa!

Tua mulher é tinhosa e há-de parir um sapo chantado no guardanapo!

Neto de cagarrinhosa!

Furta cebolas! Hiu! Hiu!

Excomungado nas erguejas!

Burrela, cornudo sejas!

Toma o pão que te caiu!

A mulher que te fugiu

per'a Ilha da Madeira!

Cornudo atá mangueira,

toma o pão que te caiu!

Hiu! Hiu! Lanço-te üa pulha!

Dê-dê! Pica naquela!

Hump! Hump! Caga na vela!

Hio, cabeça de grulha!

Perna de cigarra velha,

caganita de coelha,

pelourinho da Pampulha!

Mija n'agulha, mija n'agulha!

Chega o PARVO ao batel do Anjo e dlz:

PARVO — Hou da barca!
Anjo — Que me queres?
PARVO — Queres-me passar além?
Anjo — Quem és tu?
PARVO — Samica alguém.
Anjo — Tu passarás, se quiseres; porque em todos teus fazeres per malícia nom erraste.

Tua simpleza t'abaste para gozar dos prazeres.

Espera entanto per i:

veremos se vem alguém,

merecedor de tal bem,

que deva de entrar aqui.

Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas, e chega ao batel

infernal, e diz:
Sapateiro — Hou da barca!
DIABO    — Quem vem i?  Santo sapateiro honrado,  como vens tão carregado?...

Sapateiro — Mandaram-me vir assim...

E para onde é a viagem?

DIABO    —  Para o lago dos danados.
Sapateiro — Os que morrem confessados  onde têm sua passagem?

DIABO    — Nom cures de mais linguagem! Esta é a tua barca, esta!

Sapateiro —  Renegaria eu da festa e da puta da barcagem!

Como poderá isso ser, confessado e comungado?!...

DIABO    — Tu morreste excomungado:

Nom o quiseste dizer.
Esperavas de viver, calaste dous mil enganos...
Tu roubaste bem trint'anos o povo com teu mester.
Embarca, era má para ti, que há já muito que t'espero!

Sapateiro — Pois digo-te que nom quero!
DIABO    — Que te pês, hás de ir, si, si!
Sapateiro — Quantas missas eu ouvi, nom me hão elas de prestar?
DIABO    — Ouvir missa, então roubar,  é caminho per'aqui.
Sapateiro — E as ofertas que darão? E as horas dos finados?

DIABO    — E os dinheiros mal levados, que foi da satisfação?
Sapateiro — Ah! Nom praza ò cordovão, nem à puta da badana, se é esta boa
traquitana  em que se vê Jan Antão!

Ora juro a Deus que é graça!
Vai-se à barca do Anjo, e diz:
Hou da santa caravela, poderês levar-me nela?

Anjo — A carrega t'embaraça.
Sapateiro — Nom há mercê que me Deus faça? Isto sequer irá.

Anjo — Essa barca que lá está

Leva quem rouba de praça.
Oh! almas embaraçadas!

Sapateiro    Ora eu me maravilho haverdes por grão peguilho quatro forminhas cagadas  que podem bem ir  chantadas num cantinho desse leito!
Anjo — Se tu viveras direito,

Elas foram cá escusadas.

Sapateiro — Assim que determinais que vá cozer ò Inferno?
Anjo —  Escrito estás no caderno das ementas infernais.

Torna-se à barca dos danados, e diz:

Sapateiro — Hou barqueiros! Que aguardais?

Vamos, venha a prancha logo e levai-me àquele fogo!
Não nos detenhamos mais!
Vem um Frade com uma Moça pela mão, e um broquel e uma espada na

outra, e um casco debaixo do capelo; e, ele mesmo fazendo a baixa, começou de
dançar, dizendo:
Frade — Tai-rai-rai-ra-rã; ta-ri-ri-rã;

   ta-rai-rai-rai-rã; tai-ri-ri-rã:
   tã-tã; ta-ri-rim-rim-rã. Huhá!

DIABO    — Que é isso, padre?! Que vai lá?
Frade — Deo gratias! Som cortesão.
DIABO    — Sabês também o tordião?
Frade — Porque não? Como ora sei!
DIABO    — Pois entrai! Eu tangerei e faremos um serão. Essa dama é ela vossa?

Frade — Por minha la tenho eu, e sempre a tive de meu,

DIABO    —  Fizestes bem, que é formosa!

E não vos punham lá grosa  no vosso convento santo?

Frade —  E eles fazem outro tanto!
DIABO    — Que cousa tão preciosa...

Entrai, padre reverendo!

Frade — Para onde levais gente?
DIABO    — Para aquele fogo ardente que nom temestes vivendo.
Frade —  Juro a Deus que nom t'entendo! E este hábito não me vai?

DIABO    — Gentil padre mundanal, a Belzebu vos encomendo!
Frade — Corpo de Deus consagrado!

Pela fé de Jesus Cristo, que eu nom posso entender isto!
Eu hei de ser condenado?!... Um padre tão namorado e tanto dado à virtude?
Assim Deus me dê saúde, que eu estou maravilhado!

DIABO    — Não curês de mais detença.

Embarcai e partiremos: tomareis um par de ramos.

Frade — Nom ficou isso n'avença.
DIABO    — Pois dada está já a sentença!
Frade — Pardeus! Essa seria ela!

Não vai em tal caravela minha senhora Florença.
Como? Por ser namorado e folgar com uma mulher se há um frade de

perder, com tanto salmo rezado?!...

DIABO    — Ora estás bem aviado!
Frade —  Mais estás bem corrigido!
DIABO    — Devoto padre marido, haveis de ser cá pingado...

Descobriu o Frade a cabeça, tirando o capelo; e apareceu o casco, e diz o Frade:
Frade — Mantenha Deus esta c'oroa!
DIABO    — ó padre Frei Capacete! Cuidei que tínheis barrete...

Frade — Sabê que fui da pessoa!

Esta espada é roloa  e este broquel, rolão.

DIABO    — Dê Vossa Reverenda lição d'esgrima, que é cousa boa!

Começou o frade a dar lição d'esgrima com a espada e broquel, que eram

d'esgrimir, e diz desta maneira:
Frade — Deo gratias! Demos caçada!

Para sempre contra sus!

Um fendente! Ora sus!

Esta é a primeira levada.

Alto! Levantai a espada!
Talho largo, e um revés!

E logo colher os pés,

que todo o al no é nada!

Quando o recolher se tarda

o ferir nom é prudente.

Ora, sus! Mui largamente,

cortai na segunda guarda!

—Guarde-me Deus d'espingarda

Ah! Nom praza a São Domingos

com tanta descortesia!

Tornou a tomar a Moça pela mão, dizendo:

FRADE Vamos à barca da Glória!

Começou o Frade a fazer o tordião e foram dançando até o batel do Anjo desta maneira:

FRADE Ta-ra-ra-ra

i-rã; ta-ri-ri-ri-rã;

rai-rai-rã;

ta-ri-ri-rã; ta-ri-ri-rã.

Huhá!

Deo gratias

! Há lugar cá

pera minha reverença?

E a senhora Florença

polo meu entrará lá!

PARVO Andar, muitieramá!

Furtaste esse trinchão, frade?

FRADE Senhora, dá-me à vontade

que este feito mal está.

Vamos onde havemos d'ir!

Não praza a Deus coa a ribeira!

Eu não vejo aqui maneira

senão, enfim, concrudir.

DIABO    Haveis, padre, de viir.

FRADE Agasalhai-me lá Florença,

e compra-se esta sentença:

ordenemos de partir.

Tanto que o Frade foi embarcado, veio üa Alcov

iteira, per nome BRÍZIDA Vaz, a qual chegando

à barca infernal, diz desta maneira:

BRÍZIDA Hou lá da barca, hou lá!

DIABO    Quem chama?

BRÍZIDA BRÍZIDA Vaz.

DIABO    E aguarda-me, rapaz?

Como nom vem ela já?

COMPANHEIRO Diz que nom há-de vir cá

sem Joana de Valdês.

DIABO    Entrai vós, e remarês.

BRÍZIDA Nom quero eu entrar lá.

DIABO    Que sabroso arrecear!

BRÍZIDA No é essa barca que eu cato.

DIABO    E trazês vós muito fato?

BRÍZIDA O que me convém levar.

Día. Que é o que havês d'embarcar?

BRÍZIDA Seiscentos virgos postiços

e três arcas de feitiços

que nom podem mais levar.

Três almários de mentir,

e cinco cofres de enlheos,

e alguns furtos alheos,

assi em jóias de vestir,

guarda-roupa d'encobrir,

enfim - casa movediça;

um estrado de cortiça

com dous coxins d'encobrir.

A mor cárrega que é:

essas moças que vendia.

Daquestra mercadoria

trago eu muita, à bofé!

DIABO    Ora ponde aqui o pé...

BRÍZIDA Hui! E eu vou pera o Paraíso!

DIABO    E quem te dixe a ti isso?

BRÍZIDA Lá hei-de ir desta maré.

Eu sô üa mártela tal!...

Açoutes tenho levados

e tormentos suportados

que ninguém me foi igual.

Se fosse ò fogo infernal,

lá iria todo o mundo!

A estoutra barca, cá fundo,

me vou, que é mais real.

Chegando à Barca da Glória diz ao Anjo:

Barqueiro mano, meus olhos,

prancha a Brísida Vaz.

ANJO: Eu não sei quem te cá traz...

BRÍZIDA Peço-vo-lo de giolhos!

Cuidais que trago piolhos,

anjo de Deos, minha rosa?

Eu sô aquela preciosa

que dava as moças a molhos,

a que criava as meninas

pera os cónegos da Sé...

Passai-me, por vossa fé,

meu amor, minhas boninas,

olho de perlinhas finas!

E eu som apostolada,

angelada e martelada,

e fiz cousas mui divinas.

Santa Úrsula nom converteu

tantas cachopas como eu:

todas salvas polo meu

que nenhüa se perdeu.

E prouve Àquele do Céu

que todas acharam dono.

Cuidais que dormia eu sono?

Nem ponto se me perdeu!

ANJO Ora vai lá embarcar,

não estês importunando.

BRÍZIDA Pois estou-vos eu contando

o porque me haveis de levar.

ANJO Não cures de importunar,

que não podes vir aqui.

BRÍZIDA E que má-hora eu servi,

pois não me há-de aproveitar!...

Torna-se BRÍZIDA Vaz à Barca do Inferno, dizendo:

BRÍZIDA Hou barqueiros da má-hora,

que é da prancha, que eis me vou?

E já há muito que aqui estou,

e pareço mal cá de fora.

DIABO    Ora entrai, minha senhora,

e sereis bem recebida;

se vivestes santa vida,

vós o sentirês agora...

Tanto que BRÍZIDA Vaz se embarcou, veo um

JUDEU, com um bode às costas; e, chegando ao

batel dos danados, diz:

JUDEU  Que vai cá? Hou marinheiro!

DIABO    Oh! que má-hora vieste!...

JUDEU  Cuj'é esta barca que preste?

DIABO    Esta barca é do barqueiro.

JUDEU . Passai-me por meu dinheiro.

DIABO    E o bode há cá de vir?

JUDEU Pois também o bode há-de vir.

DIABO    Que escusado passageiro!

JUDEU Sem bode, como irei lá?

DIABO    Nem eu nom passo cabrões.

JUDEU Eis aqui quatro tostões

e mais se vos pagará.

Por vida do Semifará

que me passeis o cabrão!

Querês mais outro tostão?

DIABO    Nem tu nom hás-de vir cá.

JUDEU Porque nom irá o JUDEU

onde vai Brísida Vaz?

Ao senhor meirinho apraz?

Senhor meirinho, irei eu?

DIABO    E o fidalgo, quem lhe deu...

JUDEU O mando, dizês, do batel?

CORREGEDOR, coronel,

castigai este sandeu!

Azará, pedra miúda,

lodo, chanto, fogo, lenha,

caganeira que te venha!

Má corrença que te acuda!

Par el Deu, que te sacuda

coa beca nos focinhos!

Fazes burla dos meirinhos?

Dize, filho da cornuda!

PARVO Furtaste a chiba cabrão?

Parecês-me vós a mim

gafanhoto d'Almeirim

chacinado em um seirão.

DIABO    JUDEU, lá te passarão,

porque vão mais despejados.

PARVO E ele mijou nos finados

n'ergueja de São Gião!

E comia a carne da panela

no dia de Nosso Senhor!

E aperta o salvador,

e mija na caravela!

DIABO    Sus, sus! Demos à vela!

Vós, JUDEU, irês à toa,

que sois mui ruim pessoa.

Levai o cabrão na trela!

Vem um CORREGEDOR, carregado de feitos, e, ch

egando à barca do Inferno, com sua vara na

mão, diz:

CORREGEDOR Hou da barca!

DIABO    Que quereis?

CORREGEDOR Está aqui o senhor juiz?

DIABO    Oh amador de perdiz.

gentil cárrega trazeis!

CORREGEDOR No meu ar conhecereis

que nom é ela do meu jeito.

DIABO    Como vai lá o direito?

CORREGEDOR Nestes feitos o vereis.

DIABO    Ora, pois, entrai. Veremos

que diz i nesse papel...

CORREGEDOR E onde vai o batel?

DIABO    No Inferno vos poeremos.

CORREGEDOR Como? À terra dos demos há-de ir um CORREGEDOR?

DIABO    Santo desCORREGEDOR,  embarcai, e remaremos!

Ora, entrai, pois que viestes!

CORREGEDOR Non est de regulae juris, não!

DIABO    

Ita, Ita

! Dai cá a mão!

Remaremos um remo destes.

Fazei conta que nacestes

pera nosso companheiro.

- Que fazes tu, barzoneiro?

Faze-lhe essa prancha prestes!

CORREGEDOR Oh! Renego da viagem

e de quem me há-de levar!

Há 'qui meirinho do mar?

DIABO    Não há tal costumagem.

CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem, nem hoc nom potest esse

.

DIABO    Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem... Entrai, entrai,CORREGEDOR!

CORREGEDOR Hou! Videtis qui petatis- Super jure magestatistem vosso mando vigor?

DIABO    Quando éreis ouvidor

nonne accepistis rapina? Pois ireis pela bolina

onde nossa mercê for...

Oh! que isca esse papel

pera um fogo que eu sei!

CORREGEDOR Domine, memento mei!

DIABO    Non es tempus, bacharel! Imbarquemini inbatel quia Judicastis malitia.

CORREGEDOR Sempre ego justitiafecit, e bem por nivel.

DIABO    E as peitas dos JUDEUs que a vossa mulher levava?

CORREGEDOR Isso eu não o tomava eram lá percalços seus. Nom som pecatus meus, peccavit uxore mea.

DIABO    Et vobis quoque cum ea, não temuistis Deus. A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum. Ut quid eos non audistis?

CORREGEDOR Vós, arrais, nonne legistis que o dar quebra os pinedos?

Os direitos estão quedos,

sed aliquid tradidistis...

DIABO    Ora entrai, nos negros fados!

Ireis ao lago dos cães

e vereis os escrivães

como estão tão prosperados.

CORREGEDOR E na terra dos danados estão os Evangelistas?

DIABO    Os mestres das burlas vistas lá estão bem fraguados.

Estando o CORREGEDOR nesta prática com o Arrais infernal chegou um PROCURADOR, carregado

de livros, e diz o CORREGEDOR ao PROCURADOR:

CORREGEDOR Ó senhor PROCURADOR! PROCURADOR Bejo-vo-las mãos, Juiz! Que diz esse arrais? Que diz?

DIABO    Que serês bom remador.

Entrai, bacharel doutor,

e ireis dando na bomba.

PROCURADOR E este barqueiro zomba...

Jogatais de zombador?

Essa gente que aí está

pera onde a levais?

DIABO    Pera as penas infernais.

PROCURADOR Dix! Nom vou eu pera lá!

Outro navio está cá,

muito milhor assombrado.

DIABO    Ora estás bem aviado!

Entra, muitieramá!

CORREGEDOR Confessaste-vos, doutor?

PROCURADOR Bacharel

som. Dou-me à Demo!

Não cuidei que era extremo,

nem de morte minha dor.

E vós, senhor CORREGEDOR?

CORREGEDOR Eu mui bem me confessei,

mas tudo quanto roubei

encobri ao confessor...

Porque, se o nom tornais,

não vos querem absolver,

e é mui mau de volver

depois que o apanhais.

DIABO    Pois porque nom embarcais?

PROCURADOR Quia speramus in Deo.

DIABO    Imbarquemini in barco meo... Pera que esperatis mais?

Vão-se ambos ao batel da Glória, e, chegando, diz o CORREGEDOR ao Anjo:

 

CORREGEDOR Ó arrais dos gloriosos,

passai-nos neste batel!

ANJO Oh! pragas pera papel,

pera as almas odiosos!

Como vindes preciosos,

sendo filhos da ciência!

CORREGEDOR Oh! Habeatis clemência e passai-nos como vossos!

PARVO Hou, homens dos breviairos, rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos!

CORREGEDOR Oh! não nos sejais contrairos,

pois nom temos outra ponte!

PARVO Belequinis ubi sunt? Ego latinus macairos.

ANJO A justiça divinal

vos manda vir carregados

porque vades embarcados

nesse batel infernal.

CORREGEDOR Oh! nom praza a São Marçal!

coa ribeira, nem co rio!

Cuidam lá que é desvario

haver cá tamanho mal!

PROCURADOR Que ribeira é esta tal!

PARVO Parecês-me vós a mi

como cagado nebri,

mandado no Sardoal.

Embarquetis in zambuquis!

CORREGEDOR Venha a negra prancha cá! Vamos ver este segredo.

PROCURADOR Diz umtexto do Degredo...

DIABO    Entrai, que cá se dirá!

E Tanto que foram dentro no batel dos condenados, disse o CORREGEDOR a BRÍZIDA Vaz, porque a conhecia:

CORREGEDOR Oh! esteis muitieramá, senhora BRÍZIDA Vaz!

BRÍZIDA Já siquer estou em paz,

que não me leixáveis lá.

Cada hora sentenciada:

«Justiça que manda fazer....»

CORREGEDOR E vós... tornar a tecer e urdir outra meada.

BRÍZIDA Dizede, juiz d'alçada:

vem lá Pêro de Lixboa?

Levá-lo-emos à toa

e irá nesta barcada.

Vem um homem que morreu CAVALEIROS   , e, ch

egando ao batel dos mal-aventurados, disse o

Arrais, tanto que chegou:

DIABO    Venhais embora, CAVALEIROS   !

Que diz lá Garcia Moniz?

CAVALEIROS    Eu te direi que ele diz:

que fui bem-aventurado

em morrer dependurado

como o tordo na buiz,

e diz que os feitos que eu fiz

me fazem canonizado.

DIABO    Entra cá, governarás

atá as portas do Inferno.

CAVALEIROS    Nom é essa a nau que eu governo.

DIABO    Mando-te eu que aqui irás.

CAVALEIROS    Oh! nom praza a Barrabás!

Se Garcia Moniz diz

que os que morrem como eu fiz

são livres de Satanás...

E disse que a Deus prouvera

que fora ele o CAVALEIROS   ;

e que fosse Deus louvado

que em bo'hora eu cá nacera;

e que o Senhor m'escolhera;

e por bem vi beleguins.

E com isto mil latins,

mui lindos, feitos de cera.

E, no passo derradeiro,

me disse nos meus ouvidos

que o lugar dos escolhidos

era a forca e o Limoeiro;

nem guardião do moesteiro

nom tinha tão santa gente

como Afonso Valente

que é agora carcereiro.

DIABO    Dava-te consolação

isso, ou algum esforço?

CAVALEIROS    Com o baraço no pescoço,

mui mal presta a pregação...

E ele leva a devação

que há-de tornar a jentar...

Mas quem há-de estar no ar

avorrece-lhe o sermão.

DIABO    Entra, entra no batel, que ao Inferno hás-de ir!

CAVALEIROS    O Moniz há-de mentir? Disse-me que com São Miguel jentaria pão e mel

tanto que fosse CAVALEIROS   . Ora, já passei meu fado e já feito é o burel.

Agora não sei que é isso:

não me falou em ribeira,

nem barqueiro, nem barqueira,

senão - logo ò Paraíso.

Isto muito em seu siso.

e era santo o meu baraço...

Eu não sei que aqui faço:

que é desta glória emproviso?

 

DIABO  Falou-te no Purgatório?

CAVALEIROS   Disse que era o Limoeiro,

e ora por ele o salteiro

e o pregão vitatório;

e que era mui notório

que àqueles deciprinados

eram horas dos finados

e missas de São Gregório.

DIABO  Quero-te desenganar:

se o que disse tomaras,

certo é que te salvaras.

Não o quiseste tomar...

- Alto! Todos a tirar,

que está em seco o batel!

- Saí vós, Frei Babriel!

Ajudai ali a botar!

Vêm Quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem

cada um a Cruz de Cristo, pelo qual Senhor e acrecentamento de Sua santa fé católica morrera

m em poder dos mouros. Absoltos a culpa e pena per privilégio que os que assi morrem têm dos mistérios da Paixão d'Aquele por Quem padecem, outorgados por todos os Presidentes Sumos Pontífices da Madre Santa Igreja. E a cantiga que assi cantavam, quanto a palavra dela, é a seguinte:

CAVALEIROS

À barca, à barca segura,

barca bem guarnecida,

à barca, à barca da vida!

Senhores que trabalhais

pola vida transitória,

memória , por Deus, memória

deste temeroso cais!

À barca, à barca, mortais,

Barca bem guarnecida,

à barca, à barca da vida!

Vigiai-vos, pecadores,

que, depois da sepultura,

neste rio está a ventura

de prazeres ou dolores!

À barca, à barca, senhores,

barca mui nobrecida,

à barca, à barca da vida!

E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando, com suas espadas e

escudos, disse o Arrais da perdição desta maneira:

 

DIABO  Cavaleiros, vós passais e nom perguntais onde is?

1º CAVALEIRO Vós, Satanás, presumis?

Atentai com quem falais!

2º CAVALEIRO Vós que nos demandais? Siquer conhecê-nos bem: morremos nas Partes d'Além, e não queirais saber mais.

DIABO  Entrai cá! Que cousa é essa? Eu nom posso entender isto!

CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo não vai em tal barca como essa!

Tornaram a prosseguir, cantando, seu caminho direito à barca da Glória, e, tanto que chegam,

diz o Anjo:

ANJO Ó cavaleiros de Deus,

a vós estou esperando,

que morrestes pelejando

por Cristo, Senhor dos Céus!

Sois livres de todo mal,

mártires da Santa Igreja,

que quem morre em tal peleja

merece paz eternal.

 

E assi embarcam