SONETOS
I
Para cantar de amor tenros cuidados,
Tomo entre vós, ó montes, o instrumento;
Ouvi pois o meu fúnebre lamento;
Se é, que de compaixão sois animados:
Já vós vistes, que aos ecos magoados
Do trácio Orfeu parava o mesmo vento;
Da lira de Anfião ao doce acento
Se viram os rochedos abalados.
Bem sei, que de outros gênios o Destino,
Para cingir de Apolo a verde rama,
Lhes influiu na lira estro divino:
O canto, pois, que a minha voz derrama,
Porque ao menos o entoa um peregrino,
Se faz digno entre vós também de fama.
II
Leia a posteridade, ó pátrio Rio,
Em meus versos teu nome celebrado;
Por que vejas uma hora despertado
O sono vil do esquecimento frio:
Não vês nas tuas margens o sombrio,
Fresco assento de um álamo copado;
Não vês ninfa cantar, pastar o gado
Na tarde clara do calmoso estio.
Turvo banhando as pálidas areias
Nas porções do riquíssimo tesouro
O vasto campo da ambição recreias.
Que de seus raios o planeta louro
Enriquecendo o influxo em tuas veias,
Quanto em chamas fecunda, brota em ouro.
III
Pastores, que levais ao monte o gado,
Vêde lá como andais por essa serra;
Que para dar contágio a toda a terra,
Basta ver se o meu rosto magoado:
Eu ando (vós me vêdes) tão pesado;
E a pastora infiel, que me faz guerra,
É a mesma, que em seu semblante encerra
A causa de um martírio tão cansado.
Se a quereis conhecer, vinde comigo,
Vereis a formosura, que eu adoro;
Mas não; tanto não sou vosso inimigo:
Deixai, não a vejais; eu vo-lo imploro;
Que se seguir quiserdes, o que eu sigo,
Chorareis, ó pastores, o que eu choro.
IV
Sou pastor; não te nego; os meus montados
São esses, que aí vês; vivo contente
Ao trazer entre a relva florescente
A doce companhia dos meus gados;
Ali me ouvem os troncos namorados,
Em que se transformou a antiga gente;
Qualquer deles o seu estrago sente;
Como eu sinto também os meus cuidados.
Vós, ó troncos, (lhes digo) que algum dia
Firmes vos contemplastes, e seguros
Nos braços de uma bela companhia;
Consolai-vos comigo, ó troncos duros;
Que eu alegre algum tempo assim me via;
E hoje os tratos de Amor choro perjuros.
V
Se sou pobre pastor, se não governo
Reinos, nações, províncias, mundo, e gentes;
Se em frio, calma, e chuvas inclementes
Passo o verão, outono, estio, inverno;
Nem por isso trocara o abrigo terno
Desta choça, em que vivo, coas enchentes
Dessa grande fortuna: assaz presentes
Tenho as paixões desse tormento eterno.
Adorar as traições, amar o engano,
Ouvir dos lastimosos o gemido,
Passar aflito o dia, o mês, e o ano;
Seja embora prazer; que a meu ouvido
Soa melhor a voz do desengano,
Que da torpe lisonja o infame ruído.
VI
Brandas ribeiras, quanto estou contente
De ver nos outra vez, se isto é verdade!
Quanto me alegra ouvir a suavidade,
Com que Fílis entoa a voz cadente!
Os rebanhos, o gado, o campo, a gente,
Tudo me está causando novidade:
Oh como é certo, que a cruel saudade
Faz tudo, do que foi, mui diferente!
Recebei (eu vos peco) um desgraçado,
Que andou té agora por incerto giro
Correndo sempre atrás do seu cuidado:
Este pranto, estes ais, com que respiro,
Podendo comover o vosso agrado,
Façam digno de vós o meu suspiro.
VII
Onde estou? Este sítio desconheço:
Quem fez tão diferente aquele prado?
Tudo outra natureza tem tomado;
E em contemplá-lo tímido esmoreço.
Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço
De estar a ela um dia reclinado:
Ali em vale um monte está mudado:
Quanto pode dos anos o progresso!
Árvores aqui vi tão florescentes,
Que faziam perpétua a primavera:
Nem troncos vejo agora decadentes.
Eu me engano: a região esta não era:
Mas que venho a estranhar, se estão presentes
Meus males, com que tudo degenera!
VIII
Este é o rio, a montanha é esta,
Estes os troncos, estes os rochedos;
São estes inda os mesmos arvoredos;
Esta é a mesma rústica floresta.
Tudo cheio de horror se manifesta,
Rio, montanha, troncos, e penedos;
Que de amor nos suavíssimos enredos
Foi cena alegre, e urna é já funesta.
Oh quão lembrado estou de haver subido
Aquele monte, e as vezes, que baixando
Deixei do pranto o vale umedecido!
Tudo me está a memória retratando;
Que da mesma saudade o infame ruído
Vem as mortas espécies despertando.
IX
Pouco importa, formosa Daliana,
Que fugindo de ouvir me, o fuso tomes;
Se quanto mais me afliges, e consomes,
Tanto te adoro mais, bela serrana.
Ou já fujas do abrigo da cabana,
Ou sobre os altos montes mais te assomes,
Faremos imortais os nossos nomes,
Eu por ser firme, tu por ser tirana.
Um obséquio, que foi de amor rendido,
Bem pode ser, pastora, desprezado;
Mas nunca se verá desvanecido:
Sim, que para lisonja do cuidado,
Testemunhas serão de meu gemido
Este monte, este vale, aquele prado.
X
Eu ponho esta sanfona, tu, Palemo,
Porás a ovelha branca, e o cajado;
E ambos ao som da flauta magoado
Podemos competir de extremo a extremo.
Principia, pastor; que eu te não temo;
Inda que sejas tão avantajado
No cântico amebeu: para louvado
Escolhamos embora o velho Alcemo.
Que esperas? Toma a flauta, principia;
Eu quero acompanhar te; os horizontes
Já se enchem de prazer, e de alegria:
Parece, que estes prados, e estas fontes
Já sabem, que é o assunto da porfia
Nise, a melhor pastora destes montes.
XI
Formosa é Daliana; o seu cabelo,
A testa, a sobrancelha é peregrina;
Mas nada tem, que ver coa bela Eulina,
Que é todo o meu amor, o meu desvê-lo:
Parece escura a nove em paralelo
Da sua branca face; onde a bonina
As cores misturou na cor mais fina,
Que faz sobressair seu rosto belo.
Tanto os seus lindos olhos enamoram,
Que arrebatados, como em doce encanto,
Os que a chegam a ver, todos a adoram.
Se alguém disser, que a engrandeço tanto
Veia, para desculpa dos que choram
Veja a Eulina; e então suspenda o pranto.
XII
Fatigado da calma se acolhia
Junto o rebanho à sombra dos salgueiros;
E o sol, queimando os ásperos oiteiros,
Com violência maior no campo ardia.
Sufocava se o vento, que gemia
Entre o verde matiz dos sovereiros;
E tanto ao gado, como aos pegureiros
Desmaiava o calor do intenso dia.
Nesta ardente estação, de fino amante
Dando mostras Daliso, atravessava
O campo todo em busca de Violante.
Seu descuido em seu fogo desculpava;
Que mal feria o sol tão penetrante,
Onde maior incêndio a alma abrasava.
XIII
Nise ? Nise ? onde estás ? Aonde espera
Achar te uma alma, que por ti suspira,
Se quanto a vista se dilata, e gira,
Tanto mais de encontrar te desespera!
Ah se ao menos teu nome ouvir pudera
Entre esta aura suave, que respira!
Nise, cuido, que diz; mas é mentira.
Nise, cuidei que ouvia; e tal não era.
Grutas, troncos, penhascos da espessura,
Se o meu bem, se a minha alma em vós se esconde,
Mostrai, mostrai me a sua formosura.
Nem ao menos o eco me responde!
Ah como é certa a minha desventura!
Nise ? Nise ? onde estás ? aonde ? aonde ?
XIV
Quem deixa o trato pastoril amado
Pela ingrata, civil correspondência,
Ou desconhece o rosto da violência,
Ou do retiro a paz não tem provado.
Que bem é ver nos campos transladado
No gênio do pastor, o da inocência!
E que mal é no trato, e na aparência
Ver sempre o cortesão dissimulado!
Ali respira amor sinceridade;
Aqui sempre a traição seu rosto encobre;
Um só trata a mentira, outro a verdade.
Ali não há fortuna, que soçobre;
Aqui quanto se observa, é variedade:
Oh ventura do rico! Oh bem do pobre!
XV
Formoso, e manso gado, que pascendo
A relva andais por entre o verde prado,
Venturoso rebanho, feliz gado,
Que à bela Antandra estais obedecendo;
Já de Corino os ecos percebendo
A frente levantais, ouvis parado;
Ou já de Alcino ao canto levantado,
Pouco e pouco vos ides recolhendo;
Eu, o mísero Alfeu, que em meu destino
Lamento as sem razões da desventura,
A seguir vos também hoje me inclino:
Medi meu rosto: ouvi minha ternura;
Porque o aspecto, e voz de um peregrino
Sempre faz novidade na espessura.
XVI
Toda a mortal fadiga adormecia
No silêncio, que a noite convidava;
Nada o sono suavíssimo alterava
Na muda confusão da sombra fria:
Só Fido, que de amor por Lise ardia,
No sossego maior não repousava;
Sentindo o mal, com lágrimas culpava
A sorte; porque dela se partia.
Vê Fido, que o seu bem lhe nega a sorte;
Querer enternecê-na é inútil arte;
Fazer o que ela quer, é rigor forte:
Mas de modo entre as penas se reparte;
Que à Lise rende a alma, a vida à morte:
Por que uma parte alente a outra parte.
XVII
Deixa, que por um pouco aquele monte
Escute a glória, que a meu peito assiste:
Porque nem sempre lastimoso, e triste
Hei de chorar à margem desta fonte.
Agora, que nem sombra há no horizonte,
Nem o álamo ao zéfiro resiste,
Aquela hora ditosa, em que me viste
Na posse de meu bem, deixa, que conte.
Mas que modo, que acento, que harmonia
Bastante pode ser, gentil pastora,
Para explicar afetos de alegria!
Que hei de dizer, se esta alma, que te adora,
Só costumada às vozes da agonia,
A frase do prazer ainda ignora!
XVIII
Aquela cinta azul, que o céu estende
A nossa mão esquerda, aquele grito,
Com que está toda a noite o corvo aflito
Dizendo um não sei quê, que não se entende;
Levantar me de um sonho, quando atende
O meu ouvido um mísero conflito,
A tempo, que o voraz lobo maldito
A minha ovelha mais mimosa ofende;
Encontrar a dormir tão preguiçoso
Melampo, o meu fiel, que na manada
Sempre desperto está, sempre ansioso;
Ah! queira Deus, que minta a sorte irada:
Mas de tão triste agouro cuidadoso
Só me lembro de Nise, e de mais nada.
XIX
Corino, vai buscar aquela ovelha,
Que grita lá no campo, e dormiu fora;
Anda; acorda, pastor; que sai a Aurora:
Como vem tão risonha, e tão vermelha!
Já perdi noutro tempo uma parelha
Por teu respeito; queira Deus, que agora
Não se me vá também estoutra embora;
Pois não queres ouvir, quem te aconselha.
Que sono será este tão pesado!
Nada responde, nada diz Corino:
Ora em que mãos está meu pobre gado!
Mas ai de mim! que cego desatino.
Como te hei de acusar de descuidado,
Se toda a culpa tua é meu destino!
XX
Ai de mim! como estou tão descuidado!
Como do meu rebanho assim me esqueço,
Que vendo o trasmalhar no mato espesso,
Em lugar de o tornar, fico pasmado!
Ouço o rumor que faz desaforado
O lobo nos redis; ouço o sucesso
Da ovelha, do pastor; e desconheço
Não menos, do que ao dono, o mesmo gado:
Da fonte dos meus olhos nunca enxuta
A corrente fatal, fico indeciso,
Ao ver, quanto em meu dano se executa.
Um pouco apenas meu pesar suavizo,
Quando nas serras o meu mal se escuta;
Que triste alívio! ah infeliz Daliso!
XXI
De um ramo desta faia pendurado
Veja o instrumento estar do pastor Fido;
Daquele, que entre os mais era aplaudido,
Se alguma vez nas selvas escutado.
Ser eternamente consagrado
Um ai saudoso, um fúnebre gemido;
Enquanto for no monte repetido
O seu nome, o seu canto levantado.
Se chegas a este sítio, e te persuade
A algum pesar a sua desventura,
Corresponde em afetos de piedade;
Lembra te, caminhante, da ternura
De seu canto suave; e uma saudade
Por obséquio dedica à sepultura.
XXII
Neste álamo sombrio, aonde a escura
Noite produz a imagem do segredo;
Em que apenas distingue o próprio medo
Do feio assombro a hórrida figura;
Aqui, onde não geme, nem murmura
Zéfiro brando em fúnebre arvoredo,
Sentado sabre o tosco de um penedo
Chorava Fido a sua desventura.
As lágrimas a penha enternecida
Um rio fecundou, donde manava
D’ânsia mortal a cópia derretida:
A natureza em ambos se mudava;
Abalava-se a penha comovida;
Fido, estátua da dor, se congelava.
XXIII
Tu sonora corrente, fonte pura,
Testemunha fiel da minha pena,
Sabe, que a sempre dura, e ingrata Almena
Contra o meu rendimento se conjura:
Aqui me manda estar nesta espessura,
Ouvindo a triste voz da filomena,
E bem que este martírio hoje me ordena,
Jamais espero ter melhor ventura.
Veio a dar me somente uma esperança
Nova idéia do ódio; pois sabia,
Que o rigor não me assusta, nem me cansa:
Vendo a tanto crescer minha porfia,
Quis mudar de tormento; e por vingança
Foi buscar no favor a tirania.
XXIV
Sonha em torrentes d'água, o que abrasado
Na sede ardente está; sonha em riqueza
Aquele, que no horror de uma pobreza
Anda sempre infeliz, sempre vexado:
Assim na agitação de meu cuidado
De um contínuo delírio esta alma presa,
Quando é tudo rigor, tudo aspereza,
Me finjo no prazer de um doce estado.
Ao despertar a louca fantasia
Do enfermo, do mendigo, se descobre
Do torpe engano seu a imagem fria:
Que importa pois, que a idéia alívios cobre,
Se apesar desta ingrata aleivosia,
Quanto mais rico estou, estou mais pobre.
XXV
Não de tigres as testas descarnadas,
Não de hircanos leões a pele dura,
Por sacrifício à tua formosura,
Aqui te deixo, ó Lise, penduradas:
Ânsias ardentes, lágrimas cansadas,
Com que meu rosto enfim se desfigura,
São, bela ninfa, a vítima mais pura,
Que as tuas aras guardarão sagradas.
Outro as flores, e frutos, que te envia,
Corte nos montes, corte nas florestas;
Que eu rendo as mágoas, que por ti sentia:
Mas entre flores, frutos, peles, testas,
Para adornar o altar da tirania,
Que outra vítima queres mais, do que estas ?
XXVI
Não vês, Nise, este vento desabrido,
Que arranca os duros troncos? Não vês esta,
Que vem cobrindo o céu, sombra funesta,
Entre o horror de um relâmpago incendido?
Não vês a cada instante o ar partido
Dessas linhas de fogo? Tudo cresta,
Tudo consome, tudo arrasa, e infesta,
O raio a cada instante despedido.
Ah! não temas o estrago, que ameaça
A tormenta fatal; que o Céu destina
Vejas mais feia, mais cruel desgraça:
Rasga o meu peito, já que és tão ferina;
Verás a tempestade, que em mim passa;
Conhecerás então, o que é ruína.
XXVII
Apressa se a tocar o caminhante
O pouso, que lhe marca a luz do dia;
E da sua esperança se confia,
Que chegue a entrar no porto o navegante;
Nem aquele sem termo passa avante
Na longa, duvidosa e incerta via;
Nem este atravessando a região fria
Vai levando sem rumo o curso errante:
Depois que um breve tempo houver passado,
Um se verá sobre a segura areia,
Chegará o outro ao sítio desejado:
Eu só, tendo de penas a alma cheia,
Não tenho, que esperar; que o meu cuidado
Faz, que gire sem norte a minha idéia.
XXVIII
Faz a imaginação de um bem amado,
Que nele se transforme o peito amante;
Daqui vem, que a minha alma delirante
Se não distingue já do meu cuidado.
Nesta doce loucura arrebatado
Anarda cuido ver, bem que distante;
Mas ao passo, que a busco neste instante
Me vejo no meu mal desenganado.
Pois se Anarda em mim vive, e eu nela vivo,
E por força da idéia me converto
Na bela causa de meu fogo ativo;
Como nas tristes lágrimas, que verto,
Ao querer contrastar seu gênio esquivo,
Tão longe dela estou, e estou tão perto.
XXIX
Ai Nise amada! se este meu tormento,
Se estes meus sentidíssimos gemidos
Lá no teu peito, lá nos teus ouvidos
Achar pudessem brando acolhimento;
Como alegre em servir-te, como atento
Meus votos tributara agradecidos!
Por séculos de males bem sofridos
Trocara todo o meu contentamento.
Mas se na incontrastável, pedra dura
De teu rigor não há correspondência,
Para os doces afetos de ternura;
Cesse de meus suspiros a veemência;
Que é fazer mais soberba a formosura
Adorar o rigor da resistência.
XXX
Não se passa, meu bem, na noite, e dia
Uma hora só, que a mísera lembrança
Te não tenha presente na mudança,
Que fez, para meu mal, minha alegria.
Mil imagens debuxa a fantasia,
Com que mais me atormenta e mais me cansa:
Pois se tão longe estou de uma esperança,
Que alívio pode dar me esta porfia!
Tirano foi comigo o fado ingrato;
Que crendo, em te roubar, pouca vitória,
Me deixou para sempre o teu retrato:
Eu me alegrara da passada glória,
Se quando me faltou teu doce trato,
Me faltara também dele a memória.
XXXI
Estes os olhos são da minha amada:
Que belos, que gentis, e que formosos!
Não são para os mortais tão preciosos
Os doces frutos da estação dourada.
Por eles a alegria derramada,
Tornam-se os campos de prazer gostosos;
Em zéfiros suaves, e mimosos
Toda esta região se vê banhada;
Vinde, olhos belos, vinde; e enfim trazendo
Do rosto de meu bem as prendas belas,
Dai alívios ao mal, que estou gemendo:
Mas ah delírio meu, que me atropelas!
Os olhos, que eu cuidei, que estava vendo,
Eram (quem crera tal!) duas estrelas.
XXXII
Se os poucos dias, que vivi contente,
Foram bastantes para o meu cuidado,
Que pode vir a um pobre desgraçado,
Que a idéia de seu mal não acrescente!
Aquele mesmo bem, que me consente,
Talvez propício, meu tirano fado,
Esse mesmo me diz, que o meu estado
Se há de mudar em outro diferente.
Leve pois a fortuna os seus favores;
Eu os desprezo já; porque é loucura
Comprar a tanto preço as minhas dores:
Se quer, que me não queixe, a sorte escura,
Ou saiba ser mais firme nos rigores,
Ou saiba ser constante na brandura.
XXXIII
Aqui sobre esta pedra, áspera, e dura,
Teu nome hei de estampar, ó Francelisa,
A ver, se o bruto mármore eterniza
A tua, mais que ingrata, formosura.
Já cintilam teus olhos: a figura
Avultando já vai; quanto indecisa
Pasmou na efígie a idéia, se divisa
No engraçado relevo da escultura.
Teu rosto aqui se mostra; eu não duvido,
Acuses meu delírio, quando trato
De deixar nesta pedra o vulto erguido;
É tosca a prata, o ouro é menos grato;
Contemplo o teu rigor: oh que advertido!
Só me dá esta penha o teu retrato!
XXXIV
Que feliz fora o mundo, se perdida
A lembrança de amor, de amor a glória,
Igualmente dos gostos a memória
Ficasse para sempre consumida!
Mas a pena mais triste, e mais crescida
É ver; que em nenhum tempo é transitória
Esta de amor fantástica vitória,
Que sempre na lembrança é repetida.
Amantes, os que ardeis nesse cuidado,
Fugi de amor ao venenoso intento,
Que lá para o depois vos tem guardado.
Não vos engane o infiel contentamento;
Que esse presente bem, quando passado,
Sobrará para idéia do tormento.
XXXV
Aquele, que enfermou de desgraçado,
Não espere encontrar ventura alguma:
Que o Céu ninguém consente, que presuma,
Que possa dominar seu duro fado.
Por mais, que gire o espírito cansado
Atrás de algum prazer, por mais em suma,
Que porfie, trabalhe, e se consuma,
Mudança não verá do triste estado.
Não basta algum valor, arte, ou engenho
A suspender o ardor, com que se move
A infausta roda do fatal despenho:
E bem que o peito humano as forças prove,
Que há de fazer o temerário empenho,
Onde o raio é do Céu, a mão de Jove.
XXXVI
Estes braços, Amor, com quanta glória
Foram trono feliz na formosura!
Mas este coração com que ternura
Hoje chora infeliz esta memória!
Quanto vês, é troféu de uma vitória,
Que o destino em seu templo dependura:
De uma dor esta estampa é só figura,
Na fé oculta, no pesar notória.
Saiba o mundo de teu funesto enredo;
Por que desde hoje um coração amante
De adorar teus altares tenha medo:
Mas que empreendo, se ao passo, que constante
Vou a romper a fé do meu segredo,
Não há, quem acredite um delirante!
XXXVII
Continuamente estou imaginando,
Se esta vida, que logro, tão pesada,
Há de ser sempre aflita, e magoada,
Se como o tempo enfim se há de ir mudando:
Em golfos de esperança flutuando
Mil vezes busco a praia desejada;
E a tormenta outra vez não esperada
Ao pélago infeliz me vai levando.
Tenho já o meu mal tão descoberto,
Que eu mesmo busco a minha desventura;
Pois não pode ser mais seu desconcerto.
Que me pode fazer a sorte dura,
Se para não sentir seu golpe incerto,
Tudo o que foi paixão, é já loucura!
XXXVIII
Quando, formosa Nise, dividido
De teus olhos estou nesta distancia,
Pinta a saudade, à força de minha ânsia,
Toda a memória do prazer perdido.
Lamenta o pensamento amortecido
A tua ingrata, pérfida inconstância;
E quanto observa, é só a vil jactância
Do fado, que os troféus tem conseguido.
Aonde a dita está? aonde o gosto?
Onde o contentamento? onde a alegria,
Que fecundava esse teu lindo rosto?
Tudo deixei, ó Nise, aquele dia,
Em que deixando tudo, o meu desgosto
Somente me seguiu por companhia.
XXXIX
Breves horas, Amor, há, que eu gozava
A glória, que minha alma apetecia;
E sem desconfiar da aleivosia,
Teu lisonjeiro obséquio acreditava.
Eu só à minha dita me igualava;
Pois assim avultava, assim crescia,
Que nas cenas, que então me oferecia,
O maior gosto, o maior bem lograva;
Fugiu, faltou‑me o bem: já descomposta
Da vaidade a brilhante arquitetura,
Vê‑se a ruína ao desengano exposta:
Que ligeira acabou, que mal segura!
Mas que venho a estranhar, se estava posta
Minha esperança em mãos da formosura!
XL
Quem chora ausente aquela formosura,
Em que seu maior gosto deposita,
Que bem pode gozar, que sorte, ou dita,
Que não seja funesta, triste, e escura!
A apagar os incêndios da loucura
Nos braços da esperança Amor me incita:
Mas se era a que perdi, glória infinita,
Outra igual que esperança me assegura!
Já de tanto delírio me despeço;
Porque o meu precipício encaminhado
Pela mão deste engano reconheço.
Triste! A quanto chegou meu duro fado!
Se de um fingido bem não faço apreço,
Que alívio posso dar a meu cuidado!
XLI
Injusto Amor, se de teu jugo isento
Eu vira respirar a liberdade,
Se eu pudesse da tua divindade
Cantar um dia alegre o vencimento;
Não lograras, Amor, que o meu tormento,
Vítima ardesse a tanta crueldade;
Nem se cobrira o campo da vaidade
Desses troféus, que paga o rendimento:
Mas se fugir não pude ao golpe ativo,
Buscando por meu gosto tanto estrago,
Por que te encontro, Amor, tão vingativo?
Se um tal despojo a teus altares trago,
Siga a quem te despreza, o raio esquivo;
Alente a quem te busca, o doce afago.
XLII
Morfeu doces cadeias estendia,
Com que os cansados membros me enlaçava;
E quanto mal o coração passava,
Em sonhos me debuxa a fantasia.
Lise presente vi, Lise, que um dia
Todo o meu pensamento arrebatava,
Lise, que na minha alma impressa estava,
Bem apesar da sua tirania.
Corro a prendê‑la em amorosos laços
Buscando a sombra, que apertar intento;
Nada vejo (ai de mim!) perco os meus passos.
Então mais acredito o fingimento:
Que ao ver, que Lise foge de meus braços,
A crê pelo costume o pensamento.
XLIII
Quem és tu? (ai de mim!) eu reclinado
No seio de uma víbora! Ah tirana!
Como entre as garras de uma tigre hircana
Me encontro de repente sufocado!
Não era essa, que eu tinha posta ao lado,
Da minha Nise a imagem soberana?
Não era . . . mas que digo! ela me engana:
Sim, que eu a vejo ainda no mesmo estado:
Pois como no letargo a fantasia
Tão cruel ma pintou, tão inconstante,
Que a vi.. . ? mas nada vi; que eu nada cria.
Foi sonho; foi quimera; a um peito amante
Amor não deu favores um só dia,
Que a sombra de um tormento os não quebrante.
XLIV
Há quem confie, Amor, na segurança
De um falsíssimo bem, com que dourando
O veneno mortal, vás enganando
Os tristes corações numa esperança!
Há quem ponha inda cego a confiança
Em teu fingido obséquio, que tomando
Lições de desengano, não vá dando
Pelo mundo certeza da mudança!
Há quem creia, que pode haver firmeza
Em peito feminil, quem advertido
Os cultos não profane da beleza!
Há inda, e há de haver, eu não duvido,
Enquanto não mudar a Natureza
Em Nise a formosura, o amor em Fido.
XLV
A cada instante, Amor, a cada instante
No duvidoso mar de meu cuidado
Sinto de novo um mal, e desmaiado
Entrego aos ventos a esperança errante.
Por entre a sombra fúnebre, e distante
Rompe o vulto do alivio mal formado;
Ora mais claramente debuxado,
Ora mais frágil, ora mais constante.
Corre o desejo ao vê‑lo descoberto;
Logo aos olhos mais longe se afigura,
O que se imaginava muito perto.
Faz‑se parcial da dita a desventura;
Porque nem permanece o dano certo,
Nem a glória tão pouco está segura
XLVI
Não vês, Lise, brincar esse menino
Com aquela avezinha? Estende o braço;
Deixa‑a fugir; mas apertando o laço,
A condena outra vez ao seu destino?
Nessa mesma figura, eu imagino,
Tens minha liberdade; pois ao passo,
Que cuido, que estou livre do embaraço,
Então me prende mais meu desatino.
Em um contínuo giro o pensamento
Tanto a precipitar‑me se encaminha,
Que não vejo onde pare o meu tormento.
Mas fora menos mal esta ânsia minha,
Se me faltasse a mim o entendimento,
Como falta a razão a esta avezinha.
XLVII
Que inflexível se mostra, que constante
Se vê este penhasco! já ferido
Do proceloso vento, e já batido
Do mar, que nele quebra a cada instante!
Não vi; nem hei de ver mais semelhante
Retrato dessa ingrata, a que o gemido
Jamais pode fazer, que enternecido
Seu peito atenda às queixas de um amante.
Tal és, ingrata Nise: a rebeldia,
Que vês nesse penhasco, essa dureza
Há de ceder aos golpes algum dia:
Mas que diversa é tua natureza!
Dos contínuos excessos da porfia,
Recobras novo estímulo à fereza.
XLVIII
Traidoras horas do enganoso gosto,
Que nunca imaginei, que o possuía,
Que ligeiras passastes! mal podia
Deixar aquele bem de ser suposto.
Já de parte o tormento estava posto;
E meu peito saudoso, que isto via,
As imagens da pena desmentia,
Pintando da ventura alegre o rosto.
Desanda então a fábrica elevada,
Que o plácido Morfeu tinha erigido,
Das espécies do sono fabricada:
Então é, que desperta o meu sentido,
Para observar na pompa destroçada,
Verdadeira a ruína, o bem fingido.
XLIX
Os olhos tendo posto, e o pensamento
No rumo, que demanda, mais distante;
As ondas bate o Grego Navegante,
Entregue o leme ao mar, a vela ao vento
Em vão se esforça o harmonioso acento
Da sereia, que habita o golfo errante;
Que resistindo o espírito constante,
Vence as lisonjas do enganoso intento.
Se pois, ninfas gentis, rompe a Cupido
O arco, a flecha, o dardo, a chama acesa
De um peito entre os heróis esclarecido;
Que vem buscar comigo a néscia empresa,
Se inda mais, do que Ulisses atrevido,
Sei vencer os encantos da beleza!
L
Memórias do presente, e do passado
Fazem guerra cruel dentro em meu peito;
E bem que ao sofrimento ando já feito,
Mais que nunca desperta hoje o cuidado.
Que diferente, que diverso estado
É este, em que somente o triste efeito
Da pena, a que meu mal me tem sujeito,
Me acompanha entre aflito, e magoado!
Tristes lembranças! e que em vão componho
A memória da vossa sombra escura!
Que néscio em vós a ponderar me ponho!
Ide‑vos; que em tão mísera loucura
Todo o passado bem tenho por sonho;
Só é certa a presente desventura.
LI
Adeus, ídolo belo, adeus, querido,
Ingrato bem; adeus: em paz te fica;
E essa vitória mísera publica,
Que tens barbaramente conseguido.
Eu parto, eu sigo o norte aborrecido
De meu fado infeliz: agora rica
De despojos, a teu desdém aplica
O rouco acento de um mortal gemido.
E se acaso alguma hora menos dura
Lembrando‑te de um triste, consultares
A série vil da sua desventura;
Na imensa confusão de seus pesares
Acharás, que ardeu simples, ardeu pura
A vítima de uma alma em teus altares.
LII
Que molesta lembrança, que cansada
Fadiga é esta! vejo‑me oprimido,
Medindo pela magoa do perdido
A grandeza da glória já passada.
Foi grande a dita sim; porem lembrada,
Inda a pena é maior de a haver perdido;
Quem não fora feliz, se o haver sido
Faz, que seja a paixão mais avultada!
Propício imaginei (é bem verdade)
O malévolo fado: oh quem pudera
Conhecer logo a hipócrita piedade!
Mas que em vão esta dor me desespera,
Se já entorpecida a enfermidade
Inda agora o remédio se pondera!
LIII
Ou já sobre o cajado te reclines,
Venturoso pastor, ou já tomando
Para a serra, onde as cabras vais chamando,
A fugir os meus ais te determines.
Lá te quero seguir, onde examines
Mais vivamente um coração tão brando;
Que gosta só de ouvir‑te, ainda quando
Mais sem razão me acuses, mais crimines.
Que te fiz eu, pastor ? em que condenas
Minha sincera fé, meu amor puro?
As provas, que te dei, serão pequenas?
Queres ver, que esse monte áspero, e duro
Sabe, que és causa tu das minhas penas?
Pergunta‑lhe; ouvirás, o que te juro.
LIV
Ninfas gentis, eu sou, o que abrasado
Nos incêndios de Amor, pude alguma hora,
Ao som da minha cítara sonora,
Deixar o vosso império acreditado.
Se vós, glórias de amor, de amor cuidado,
Ninfas gentis, a quem o mundo adora,
Não ouvis os suspiros, de quem chora,
Ficai‑vos; eu me vou; sigo o meu fado.
Ficai‑vos; e sabei, que o pensamento
Vai tão livre de vós, que da saudade
Não receia abrasar‑se no tormento.
Sim; que solta dos laços a vontade,
Pelo rio hei de ter do esquecimento este, aonde jamais achei piedade.
LV
Em profundo silêncio já descansa
Todo o mortal; e a minha triste idéia
Se estende, se dilata, se recreia
Pelo espaçoso campo da lembrança.
Fatiga‑se, prossegue, em vão se cansa;
E neste vário giro, em que se enleia,
Ao duvidoso passo já receia,
Que lhe possa faltar a segurança.
Que diferente tudo está notando!
Que perplexo as imagens do perdido
Num e noutro despojo vem achando!
Este não é o templo (eu o duvido)
Assim o afirma, assim o está mostrando:
Ou morreu Nise, ou este não é Fido.
LVI
Tu, ninfa, quando eu menos penetrado
Das violências de Amor vivia isento,
Propondo‑te então bela a meu tormento,
Foste doce ocasião de meu cuidado.
Roubaste o meu sossego, um doce agrado,
Um gesto lindo, um brando acolhimento
Foram somente o único instrumento,
Com que deixaste o triunfo assegurado.
Já não espero ter felicidade,
Salvo se for aquela, que confio,
Por amar‑te, apesar dessa impiedade.
Em prêmio dos suspiros, que te envio,
Ou modera o rigor da crueldade,
Ou torna‑me outra vez meu alvedrio.
LVII
Bela imagem, emprego idolatrado,
Que sempre na memória repetido,
Estás, doce ocasião de meu gemido,
Assegurando a fé de meu cuidado.
Tem‑te a minha saudade retratado;
Não para dar alívio a meu sentido;
Antes cuido; que a mágoa do perdido
Quer aumentar coa pena de lembrado.
Não julgues, que me alento com trazer‑te
Sempre viva na idéia; que a vingança
De minha sorte todo o bem perverte.
Que alívio em te lembrar minha alma alcança,
Se do mesmo tormento de não ver‑te,
Se forma o desafogo da lembrança ?
LVIII
Altas serras, que ao Céu estais servindo
De muralhas, que o tempo não profana,
Se Gigantes não sois, que a forma humana
Em duras penhas foram confundindo?
lá sobre o vosso cume se está rindo
O Monarca da luz, que esta alma engana;
Pois na face, que ostenta, soberana,
O rosto de meu bem me vai fingindo.
Que alegre, que mimoso, que brilhante
Ele se me afigura! Ah qual efeito
Em minha alma se sente neste instante!
Mas ai! a que delírios me sujeito!
Se quando no Sol vejo o seu semblante,
Em vós descubro ó penhas o seu peito?
LIX
Lembrado estou, ó penhas, que algum dia,
Na muda solidão deste arvoredo,
Comuniquei convosco o meu segredo,
E apenas brando o zéfiro me ouvia.
Com lágrimas meu peito enternecia
A dureza fatal deste rochedo,
E sobre ele uma tarde triste, e quêdo
A causa de meu mal eu escrevia.
Agora torno a ver, se a pedra dura
Conserva ainda intacta essa memória,
Que debuxou então minha escultura.
Que vejo! esta é a cifra: triste glória!
Para ser mais cruel a desventura,
Se fará imortal a minha história.
LX
Valha‑te Deus, cansada fantasia!
Que mais queres de mim? que mais pretendes?
Se quando na esperança mais te acendes,
Se desengana mais tua porfia!
Vagando regiões de dia em dia,
Novas conquistas, e troféus empreendes:
Ah que conheces mal, que mal entendes,
Onde chega do fado a tirania!
Trata de acomodar‑te ao movimento
Dessa roda volúvel, e descansa
Sobre tão fatigado pensamento.
E se inda crês no rosto da esperança,
Examina por dentro o fingimento;
E verás tempestade o que é bonança.
LXI
Deixemo‑nos, Algano, de porfia;
Que eu sei o que tu és, contra a verdade
Sempre hás de sustentar, que a divindade
Destes campos é Brites, não Maria!
Ora eu te mostrarei inda algum dia,
Em que está teu engano: a novidade,
Que agora te direi, é, que a cidade
Por melhor, do que todas a avalia.
Há pouco, que encontrei lá junto ao monte
Dous pastores, que estavam conversando,
Quando passaram ambas para a fonte;
Nem falaram em Brites: mas tomando
Para um cedro, que fica bem defronte,
O nome de Maria vão gravando.
LXII
Torno a ver‑vos, ó montes; o destino
Aqui me torna a pôr nestes oiteiros;
Onde um tempo os gabões deixei grosseiros
Pelo traje da Côrte rico, e fino.
Aqui estou entre Almendro, entre Corino,
Os meus fiéis, meus doces companheiros,
Vendo correr os míseros vaqueiros
Atrás de seu cansado desatino.
Se o bem desta choupana pode tanto,
Que chega a ter mais preço, e mais valia,
Que da cidade o lisonjeiro encanto;
Aqui descanse a louca fantasia;
E o que té agora se tornava em pranto,
Se converta em afetos de alegria.
LXIII
Já me enfado de ouvir este alarido,
Com que se engana o mundo em seu cuidado;
Quero ver entre as peles, e o cajado,
Se melhora a fortuna de partido.
Canse embora a lisonja ao que ferido
Da enganosa esperança anda magoado;
Que eu tenho de acolher‑me sempre ao lado
Do velho desengano apercebido.
Aquele adore as roupas de alto preço,
Um siga a ostentação, outro a vaidade;
Todos se enganam com igual excesso.
Eu não chamo a isto já felicidade:
Ao campo me recolho, e reconheço,
Que não há maior bem, que a soledade.
LXIV
Que tarde nasce o Sol, que vagaroso!
Parece, que se cansa, de que a um triste
Haja de aparecer: quanto resiste
A seu raio este sítio tenebroso!
Não pode ser, que o giro luminoso
Tanto tempo detenha: se persiste
Acaso o meu delírio! se me assiste
Ainda aquele humor tão venenoso!
Aquela porta ali se está cerrando;
Dela sai um pastor: outro assobia,
E o gado para o monte vai chamando.
Ora não há mais louca fantasia!
Mas quem anda, como eu, assim penando,
Não sabe, quando é noite, ou quando é dia.
LXV
Ingrata foste, Elisa; eu te condeno
A injusta sem‑razão; foste tirana,
Em renderes, belíssima serrana,
A tua liberdade ao néscio Almeno.
Que achaste no seu rosto de sereno,
De belo, ou de gentil, para inumana
Trocares pela dele esta choupana,
Em que tinhas o abrigo mais ameno?
Que canto em teu louvor entoaria?
Que te podia dar o pastor pobre?
Que extremos, mais do que eu, por ti faria?
O meu rebanho estas montanhas cobre:
Eu os excedo a todos na harmonia;
Mas ah que ele é feliz! Isto lhe sobre
LXVI
Não te assuste o prodígio: eu, caminhante,
Sou uma voz, que nesta selva habito;
Chamei‑me o pastor Fido; de um delito
Me veio o meu estrago; eu fui amante.
Uma ninfa perjura, uma inconstante
Neste estado me pôs: do peito aflito,
Por eterno castigo, arranco um grito,
Que desengane o peregrino errante.
Se em ti se dá piedade, ó passageiro,
(Que assim o pede a minha sorte escura)
Atende ao meu aviso derradeiro:
Lágrimas não te peço, nem ternura:
Por voto um desengano, te requeiro
Que consagres à minha sepultura.
LXVII
Não te cases com Gil, bela serrana;
Que é um vil, um infame, um desastrado;
Bem que ele tenha mais devesa, e gado,
A minha condição é mais humana.
Que mais te pode dar sua cabana,
Que eu aqui te não tenha aparelhado?
O leite, a fruta, o queijo, o mel dourado;
Tudo aqui acharás nesta choupana:
Bem que ele tange o seu rabil grosseiro,
Bem que te louve assim, bem que te adore,
Eu sou mais extremoso, e verdadeiro.
Eu tenho mais razão, que te enamore:
E se não, diga o mesmo Gil vaqueiro:
Se é mais, que ele te cante, ou que eu te chore.
LXVIII
Apenas rebentava no oriente
A clara luz da aurora, quando Fido,
O repouso deixando aborrecido,
Se punha a contemplar no mal, que sente.
Vê a nuvem, que foge ao transparente
Anúncio do crepúsculo luzido;
E vê de todo em riso convertido
O horror, que dissipara o raio ardente.
Por que (diz) esta sorte, que se alcança
Entre a sombra, e a luz, não sinto agora
No mal, que me atormenta, e que me cansa?
Aqui toda a tristeza se melhora:
Mas eu sem o prazer de uma esperança
Passo o ano, e o mês, o dia, a hora.
LXIX
Se à memória trouxeres algum dia,
Belíssima tirana, ídolo amado,
Os ternos ais, o pranto magoado,
Com que por ti de amor Alfeu gemia;
Confunda‑te a soberba tirania,
O ódio injusto, o violento desagrado,
Com que atrás de teu olhos arrastado
Teu ingrato rigor o conduzia.
E já que enfim tão mísero o fizeste,
Vê‑lo‑ás, cruel, em prêmio de adorar‑te,
Vê‑lo‑ás, cruel, morrer; que assim quiseste.
Dirás, lisonjeando a dor em parte:
Fui‑te ingrata, pastor; por mim morreste;
Triste remédio a quem não pode amar‑te!
LXX
Breves horas, que em rápida porfia
Ides seguindo infausto movimento,
Oh como o vosso curso foi violento,
Quando soubestes, que eu vos possuía!
Já crédito vos dava; porque via
Avultar meu feliz contentamento:
Que é mui fácil num triste estar atento
Aos enganos, que pinta a fantasia.
Logrou‑se o vosso fim; que foi levar‑me
Da falsa glória, do fingido gosto
Ao cume, donde venho a despenhar‑me:
Assim a lei do fado tem disposto,
Que haja o instantâneo bem de lisonjear‑me;
Por que o estrago, me diga, que é suposto.
LXXI
Eu cantei, não o nego, eu algum dia
Cantei do injusto amor o vencimento;
Sem saber, que o veneno mais violento
Nas doces expressões falso encobria.
Que amor era benigno, eu persuadia
A qualquer coração de amor isento;
Inda agora de amor cantara atento,
Se lhe não conhecera a aleivosia.
Ninguém de amor se fie: agora canto
Somente os seus enganos; porque sinto,
Que me tem destinado estrago tanto.
De seu favor hoje as quimeras pinto:
Amor de uma alma é pesaroso encanto;
Amor de um coração é labirinto.
LXXII
Já rompe, Nise, a matutina aurora
O negro manto, com que a noite escura,
Sufocando do Sol a face pura,
Tinha escondido a chama brilhadora.
Que alegre, que suave, que sonora,
Aquela fontezinha aqui murmura!
E nestes campos cheios de verdura
Que avultado o prazer tanto melhora!
Só minha alma em fatal melancolia,
Por te não poder ver, Nise adorada,
Não sabe inda, que coisa é alegria;
E a suavidade do prazer trocada,
Tanto mais aborrece a luz do dia,
Quanto a sombra da noite lhe agrada.
LXXIII
Quem se fia de Amor, quem se assegura
Na fantástica fé de uma beleza,
Mostra bem, que não sabe, o que é firmeza,
Que protesta de amante a formosura.
Anexa a qualidade de perjura
Ao brilhante esplendor da gentileza,
Mudável é por lei da natureza,
A que por lei de Amor é menos dura.
Deste, ó Fábio, que vês, desordenado,
Ingrato proceder se é que examinas
A razão, eu a tenho decifrado:
São as setas de Amor tão peregrinas,
Que esconde no gentil o golpe irado;
Para lograr pacífico as ruínas.
LXXIV
Sombrio bosque, sítio destinado
À habitação de um infeliz amante,
Onde chorando a mágoa penetrante
Possa desafogar o seu cuidado;
Tudo quieto está, tudo calado;
Não há fera, que grite; ave, que cante;
Se acaso saberás, que tens diante
Fido, aquele pastor desesperado!
Escuta o caso seu: mas não se atreve
A erguer a voz; aqui te deixa escrito
No tronco desta faia em cifra breve:
Mudou‑se aquele bem; hoje é delito
Lembrar‑me de Marfisa; era mui leve:
Não há mais, que atender; tudo está dito.
LXXV
Clara fonte, teu passo lisonjeiro
Pára, e ouve‑me agora um breve instante;
Que em paga da piedade o peito amante
Te será no teu curso companheiro.
Eu o primeiro fui, fui o primeiro,
Que nos braços da ninfa mais constante
Pude ver da fortuna a face errante
Jazer por glória de um triunfo inteiro.
Dura mão, inflexível crueldade
Divide o laço, com que a glória, a dita
Atara o gosto ao carro da vaidade:
E para sempre a dor ter n'alma escrita,
De um breve bem nasce imortal saudade,
De um caduco prazer mágoa infinita.
LXXVI
Enfim te hei de deixar, doce corrente
Do claro, do suavíssimo Mondego;
Hei de deixar‑te enfim; e um novo pego
Formará de meu pranto a cópia ardente.
De ti me apartarei; mas bem que ausente,
Desta lira serás eterno emprego;
E quanto influxo hoje a dever‑te chego,
Pagará de meu peito a voz cadente.
Das ninfas, que na fresca, amena estância
Das tuas margens úmidas ouvia,
Eu terei sempre n'alma a consonância;
Desde o prazo funesto deste dia
Serão fiscais eternos da minha ânsia
As memórias da tua companhia.
LXXVII
Não há no mundo fé, não há lealdade;
Tudo é, ó Fábio, torpe hipocrisia;
Fingido trato, infame aleivosia
Rodeiam sempre a cândida amizade.
Veste o engano o aspecto da verdade;
Porque melhor o vício se avalia:
Porém do tempo a mísera porfia,
Duro fiscal, lhe mostra a falsidade.
Se talvez descobrir‑se se procura
Esta de amor fantástica aparência,
É como à luz do Sol a sombra escura:
Mas que muito, se mostra a experiência,
Que da amizade a torre mais segura
Tem a base maior na dependência!
LXXVIII
Campos, que ao respirar meu triste peito
Murcha, e seca tornais vossa verdura,
Não vos assuste a pálida figura,
Com que o meu rosto vedes tão desfeito.
Vós me vistes um dia o doce efeito
Cantar do Deus de Amor, e da ventura;
Isso já se acabou; nada já dura;
Que tudo à vil desgraça está sujeito.
Tudo se muda enfim: nada há, que seja
De tão nobre, tão firme segurança,
Que não encontre o fado, o tempo, a inveja.
Esta ordem natural a tudo alcança;
E se alguém um prodígio ver deseja,
Veja meu mal, que só não tem mudança.
LXXIX
Entre este álamo, o Lise, e essa corrente,
Que agora estão meus olhos contemplando,
Parece, que hoje o céu me vem pintando
A mágoa triste, que meu peito sente.
Firmeza a nenhum deles se consente
Ao doce respirar do vento brando;
O tronco a cada instante meneando,
A fonte nunca firme, ou permanente.
Na líquida porção, na vegetante
Cópia daquelas ramas se figura
Outro rosto, outra imagem semelhante:
Quem não sabe, que a tua formosura
Sempre móvel está, sempre inconstante,
Nunca fixa se viu, nunca segura?
LXXX
Quando cheios de gosto, e de alegria
Estes campos diviso florescentes,
Então me vêm as lágrimas ardentes
Com mais ânsia, mais dor, mais agonia.
Aquele mesmo objeto, que desvia
Do humano peito as mágoas inclementes,
Esse mesmo em imagens diferentes
Toda a minha tristeza desafia.
Se das flores a bela contextura
Esmalta o campo na melhor fragrância,
Para dar uma idéia da ventura;
Como, ó Céus, para os ver terei constância,
Se cada flor me lembra a formosura
Da bela causadora de minha ânsia?
LXXXI
Junto desta corrente contemplando
Na triste falta estou de um bem que adoro;
Aqui entre estas lágrimas, que choro,
Vou a minha saudade alimentando.
Do fundo para ouvir‑me vem chegando
Das claras hamadríades o coro;
E desta fonte ao murmurar sonoro,
Parece, que o meu mal estão chorando.
Mas que peito há de haver tão desabrido,
Que fuja à minha dor! que serra, ou monte
Deixará de abalar‑se a meu gemido!
Igual caso não temo, que se conte;
Se até deste penhasco endurecido
O meu pranto brotar fez uma fonte.
LXXXII
Piedosos troncos, que a meu terno pranto
Comovidos estais, uma inimiga
E quem fere o meu peito, é quem me obriga
A tanto suspirar, a gemer tanto.
Amei a Lise; é Lise o doce encanto,
A bela ocasião desta fadiga;
Deixou‑me; que quereis, troncos, que eu diga
Em um tormento, em um fatal quebranto?
Deixou‑me a ingrata Lise: se alguma hora
Vós a vêdes talvez, dizei, que eu cego
Vos contei... mas calai, calai embora.
Se tanto a minha dor a elevar chego,
Em fé de um peito, que tão fino adora,
Ao meu silêncio o meu martírio entrego.
LXXXIII
Polir na guerra o bárbaro gentio,
Que as leis quase ignorou da natureza,
Romper de altos penhascos a rudeza,
Desentranhar o monte, abrir o rio;
Esta a virtude, a glória, o esforço, o brio
Do Russiano Herói, esta a grandeza,
Que igualou de Alexandre a fortaleza,
Que venceu as desgraças de Dario:
Mas se a lei do heroísmo se procura,
Se da virtude o espírito se atende,
Outra idéia, outra máxima o segura:
Lá vive, onde no ferro não se acende;
Vive na paz dos povos, na brandura:
Vós a ensinais, ó Rei; em vós se aprende.
XCVIII
Destes penhascos fez a natureza
O berço, em que nasci! oh quem cuidara,
Que entre penhas tão duras se criara
Uma alma terna, um peito sem dureza!
Amor, que vence os tigre por empresa
Tomou logo render‑me; ele declara
Contra o meu coração guerra tão rara,
Que não me foi bastante a fortaleza.
Por mais que eu mesmo conhecesse o dano,
A que dava ocasião minha brandura,
Nunca pude fugir ao cego engano:
Vós, que ostentais a condição mais dura,
Temei, penhas, temei; que Amor tirano,
Onde há mais resistência, mais se apura.
XCIX
Parece, ou eu me engano, que esta fonte
De repente o licor deixou turvado;
O céu, que estava limpo, e azulado,
Se vai escurecendo no horizonte:
Por que não haja horror, que não aponte
O agouro funestíssimo, e pesado,
Até de susto já não pasta o gado;
Nem uma voz se escuta em todo o monte.
Um raio de improviso na celeste
Região rebentou; um branco lírio
Da cor das violetas se reveste;
Será delírio! não, não é delírio.
Que é isto, pastor meu? que anúncio é este?
Morreu Nise (ai de mim!) tudo é martírio.
C Musas, canoras musas, este canto
Vós me inspirastes, vós meu tenro alento
Erguestes brandamente àquele assento
Que tanto, ó musas, prezo, adoro tanto.
Lágrimas tristes são, mágoas, e pranto,
Tudo o que entoa o músico instrumento;
Mas se o favor me dais, ao mundo atento
Em assunto maior farei espanto.
Se em campos não pisados algum dia
Entra a ninfa, o pastor, a ovelha, o touro,
Efeitos são da vossa melodia;
Que muito, ó musas, pois, que em fausto agouro
Cresçam do pátrio rio à margem fria
A imarcescível hera, o verde louro!